terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

A Massa e o Mito

               Se é verdade que o mito, com tudo aquilo que em si transporta de grandeza, sonho e magia, é responsável pelas mais belas páginas, histórias e crenças que nos construíram os ser e a alma colectiva, já os enganos, ignorância, pequenas mentirolas que se repetem e caucionam com outras mentiras até que, à força de tanta repetição e nenhuma experimentação passam a ser encaradas como verdades indiscutíveis, são totalmente execráveis e destes mitos andam cheias as nossas culinária e gastronomia, sendo agora já não passados no diz-que-disse de vizinhas, mas antes espalhados aos quatro ventos e caucionadas por tantos dos que a reboque desta súbita grandeza que a comunicação social emprestou aos cozinheiros, vão, na ânsia de parecerem doutos, espertos e interessantes, apimentando pratos e receitas com estas asneiras que nunca ousaram verificar na prática e a que não resistem a embelezar com alguma novel “explicação” mais ou menos imaginativa.
Já uma vez aqui deixei uma feijoada a que chamei de “7 Mitos” e que tinha a particularidade, para além de ser bem boa, de utilizar propositadamente na sua confecção sete destes mitos que nos assombram. Hoje, vou voltar à questão do modo de cozedura das massas alimentícias.
Alguém viu um dia alguma mamma italiana a cozer esparguete numa grande panela de água fervente. Com a habitual propensão dos ignorantes para se aterem aos pormenores e ignorarem o essencial, o que restou da observação foi que as massas se deviam cozer numa grande quantidade de água fervente temperada com sal; a título de justificação, inventaram que tal era essencial para que os fios de esparguete se não colassem uns aos outros na cozedura, para compor o ramalhete informativo, juntaram um fio de azeite à água e num último assomo de rigor que a quantidade certa seriam um litro de água fervente para cada cem gramas de massa. Nem mais, nem menos!
Eu nunca usei esta barbaridade de água para cozer massas e na verdade esta nunca se “colou”, como deixei aquidito, mas só há poucos dias é que, pela mão de J. Kenji López-Alt é que percebi que, para além disso, a água onde a massa se coze nem precisa estar quente!
Experiência feita e comprovada:

Ingredientes:

Esparguete seco
Água
Sal
Manteiga

Preparação:

Coloque o esparguete no fundo de uma frigideira ou caçarola onde caiba sem partir e cubra-o de água fria. Junte sal.

Leve ao lume e verifique que, ao contrário do mito, a massa está totalmente solta, apesar de encostada em feixe. Quando começar a ferver, mexa e deixe ferver com o lume baixo,
juntando mais água se necessário.
Quando estiver ao seu gosto, isto é, “al seu dente”, escorra num passador e derreta sobre a massa uma noz de manteiga. Sirva.

 Nota: o pouco líquido que escorre da massa pode ser aproveitado para enriquecer sopas ou aveludar um molho, dada a quantidade de amido que contém.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Frango recheado e confitado na sua pele

               A grande diferença entre os modos de abordar a confecção de uma peça de carne, prende-se com a temperatura a que a submetemos e, logo, com as temperaturas que as partes interiores dessa peça atingem. Poderemos dizer que, grosso modo, se pode cozinhar carne a alta ou a baixa temperaturas.
A esmagadora maioria dos pratos de carne são cozinhados a alta temperatura, quer isto dizer que, seja no tacho ou no forno, com ou sem selagem prévia, a carne é sujeita a temperaturas entre os 100ºC e os 200ºC por períodos mais ou menos prolongados ao fim dos quais está guisada, estufada ou assada. Ficaremos por aqui quanto a esta opção, por demais conhecida, e vamos debruçar-nos sobre o outro método, muitíssimo menos utilizado apesar de ir ganhando paulatinamente adeptos, a cozinha lenta de baixa temperatura, com a qual nunca se farão pratos em trinta ou quinze minutos, mas também isso não interessa nada, que cozinha “rápida” é para quem gosta tanto de cozinhar que apenas se quer despachar da tarefa. Outros mais sábios do que eu têm dedicado a essa cozinha sem o ingrediente tempo, compêndios e programas de televisão; aproveite quem quiser.
O termo confitar (do francês confit) usou-se inicialmente para designar uma carne que era cozinhada a baixa temperatura imersa na sua própria gordura, como o célebre confit de canard e os rojões em banha do Alentejo, ou em gordura alheia como no caso do bacalhau confitado em azeite. Hoje,  indo mais ao que é essencial no processo, chama-se genericamente um confitado a uma carne (ou peixe) que é cozinhada protegida do contacto com o ar, a uma temperatura superior àquela em que se dá a hidrólise (cozedura) das suas proteínas mas sempre inferior à temperatura de ebulição da água (100ºC) de modo a impedir que os sucos e humidades internas da peça passem ao estado de vapor e saiam da peça, secando-a. São por isso confitados, para além dos tradicionais, isolados por uma gordura líquida que os cobre, as peças cozinhadas a temperaturas inferiores a 100ºC embrulhadas em alumínio (papelotes), em sacos plásticos fechados, a vácuo ou não, dentro de recipientes fechados ou ainda esta verdadeira maravilha que hoje aqui trago, ao alcance de qualquer cozinheiro mesmo inexperiente, em que o isolamento da carne se faz utilizando a mais extraordinária das películas: a própria pele!

Ingredientes:

1 Frango do campo (ou de aviário, mas grande)
 Água, sal, laranja e limão
Manteiga, banha, azeite, paprika fumada, alho, raspa de limão, sal e pimenta
Recheio: 300g de fígado de frango; a moela e coração; 300g de cenoura, 300g de cogumelos;  300g de cebola; alhos, salsa, sal, pimenta, noz moscada, azeite e pão ralado q.b.

Preparação:

Deixe o frango imerso por vinte e quatro horas numa marinada cítrica feita com água, sal, sumo e cascas de laranjas e limões de modo a que perca a maior parte do sangue que contenha.
Enquanto decorre a marinada, refogue os ingredientes do recheio (ou outros a seu gosto) excepto o pão ralado. Quando a cenoura estiver cozida, passe tudo pela máquina, volte ao lume para ligar e adicione o pão ralado suficiente para secar líquidos que os vegetais sempre deixam e dar a consistência apropriada ao recheio.
Retire o frango da marinada, seque-o bem por dentro e por fora e passe ao aspecto fulcral deste processo: com a ajuda de uma agulha curva e linha de algodão,
suture toda e qualquer abertura que exista na pele, rasgões etc. deixando apenas a abertura ventral, através da qual se introduz o recheio, que deve preencher a cavidade interna por completo.
Isto não é negociável: a cavidade comporta-se durante a assadura como se fosse o exterior e a humidade da carne irá escapar-se se encontrar por onde, pelo que aqui, mesmo que não goste por aí além de recheio, há que deixar a cavidade totalmente preenchida. Depois é trabalho de “corte e costura”, unindo a pele e cosendo até que não reste qualquer sítio que não esteja coberto por pele,
usando se necessário pele suplementar que guardou de outro frango ou que lhe arranjaram no seu talho.
Devidamente isolado na sua pele e amarrado,
é altura de pincelá-lo com um creme gordo feito com os ingredientes indicados
e levá-lo ao forno.
Regule a temperatura do forno para os 100-110ºC ( o que na prática dará cerca de 85-90ºC reais) e deixe o frango por um mínimo de três horas, pincelando-o de tempos a tempos para a pele não ficar ressequida.
A partir da terceira hora, deve verificar a temperatura interna, com o auxílio de um termómetro de carne, espetando-o sempre no mesmo orifício até ao meio do recheio. Entre a quarta e a quinta horas, dependendo de muitos factores imprevisíveis como a temperatura real do forno, o centro do recheio atingirá os 80ºC e o assado está pronto. Retire o frango do forno, leve a temperatura a 220ºC e meta-o lá de novo por cinco minutos para corar a pele.
Trinche o peito como se fosse um perú e aprecie a suculência da carne que normalmente ninguém aprecia por causa da sua secura e que assim é soberba.
Sirva com acompanhamento a gosto.


quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Caras de Bacalhau no Forno ao Pilpil

             Embora cozinhar seja sempre uma fonte inesgotável de prazer, nada chega ao deslumbramento dos momentos de criação absoluta.
Cozinhar, a não ser que estejamos a falar de repetidores de receitas imutáveis (mas isso é outra coisa, que até um robot faz!), comporta sempre algo de experimental, de criativo, de único e irrepetível, até porque não há matérias-primas iguais, dias iguais  ou estados de espírito iguais. Essa é a criatividade de todos os dias, o que faz com que um prato, mesmo se tradicional, seja diferente se feito por mim ou por outro qualquer cozinheiro e que diferentes cozinhas, mesmo apresentando os mesmos pratos, tenham cada uma a sua marca distintiva e única.
Os momentos de criação absoluta são outra coisa: deles nascem pratos que mais ninguém comeu, que ocorreram na nossa cabeça, que passámos à obra e que, para o melhor e para o pior, seremos os primeiros a provar e seremos nós a nomear, como compete aos criadores.
Criar um prato não é coisa que se faça de encomenda, antes surge despoletada por um qualquer gatilho, às vezes insuspeitado. Estas “Caras de Bacalhau no Forno ao Pilpil” despontaram a partir de um comentário de uma amiga gastrónoma sobre uma cabeça de garoupa no forno, num restaurante algures em Cascais, estaladas em azeite e alho antes de forneadas. A conversa nem era comigo mas serviu de semente: E se em vez de cabeça de garoupa fosse cabeça (caras) de bacalhau? E se em vez de estaladas no azeite, fossem antes nele confitadas? E se usasse as gelatinas que o bacalhau sempre deixa ao confitar para fazer esse grande molho da cozinha basca, o Pilpil? E se…
Assim nasceu e assim se fez:

Ingredientes:

Caras de bacalhau demolhadas
Azeite virgem
Alhos e louro
Pimenta preta
Acompanhamento a gosto

Preparação:

Use um azeite muito suave e frutado e aqueça nele dentes de alho e algum louro, lentamente e nunca os deixando fritar, apenas borbulhar ligeiramente.

Passe as caras de bacalhau neste azeite, virando-as se não estiverem imersas,
tendo o cuidado de nunca permitir que a temperatura do azeite ultrapasse os 80ºC, confitando assim o bacalhau ao invés de fritá-lo.
Após cerca de dez minutos, retire as caras, salpique pimenta
e leve-as a forno bem quente, acompanhadas de batatas novas semi-cozidas, até que caras e batatas se apresentem dourados.
Entretanto, repare que no fundo do recipiente onde confitou o bacalhau, sob o azeite, está uma quantidade apreciável de um líquido leitoso.
Este líquido contém uma grande quantidade de gelatina e outras proteínas oriundas do bacalhau e é nele que vai emulsionar o azeite de modo a formar uma espécie de maionese em que o papel da gema de ovo é desempenhado pela gelatina fortemente aromática do bacalhau, que é o famoso molho basco, o Pilpil.
Deixe amornar, retire a maior parte do azeite e comece a agitar o líquido do fundo com um emulsionador
ou com varas até que a emulsão se comece a formar, acrescentando depois pouco a pouco o restante azeite, como para fazer uma maionese.
Sirva este Pilpil sobre as caras de bacalhau assadas e acompanhamentos.

  


terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Risotto de Lingueirão e Pimentos

        Se bem que o lingueirão seja marisco que há o ano inteiro*, dependendo principalmente das marés a sua apanha, é durante o Inverno que se acede com mais facilidade ao lingueirão gastronomicamente mais interessante, quando deixam de aparecer à venda os grandes exemplares do fundo (Ensis síliqua), apanhados pelo arrasto, cedendo a vez aos outros lingueirões (Pharus legumen), pequenitos e de aspecto mais sujo, apanhados de dentro da areia lodosa por mariscadores a pé armados de um cesto e de um pacote de sal, nas planuras das nossas rias e estuários.
É este o lingueirão que nos interessa.
Tenro, de tamanho que dispensa cortes no prato e senhor de um sabor poderoso, dá um pouco mais de trabalho a arranjar, depois largamente compensado no palato, num arroz, numa açorda, numa massada, numa sopa, à bulhão pato ou mesmo aberto ao natural numa chapa quente, maneira que muitos preferem a todas as outras por pensarem ser a melhor e com alguma razão, já que raramente se apanha quem saiba cozinhar o lingueirão, marisco que, se cozer, fica com menos graça que uma ostra “bem passada”, ou seja, uma borrachinha custosa de trincar e engolir. Cozinhar bivalves é ciência dominada por poucos e o lingueirão será talvez o mais incompreendido de todos eles, logo o mais mal tratado. É que, cozinhar é algo que está muito para além de saber cumprir receitas; antes de tudo o resto, cozinhar é compreender os alimentos.

Ingredientes:

Lingueirão pequeno (Pharus legumen)
Cebola
Alho
Pimento vermelho
Pimenta preta
Louro
Açafrão (estames)
Azeite
Arroz de bago curto
Vinho branco seco
Coentros

Preparação:

Por muito que o vendedor lhe jure e algum selo ateste, este lingueirão pequeno nunca está realmente depurado e essa é uma operação essencial que terá de fazer à chegada a casa. Consiste em imergir os lingueirões numa imitação de água do mar que se obtém dissolvendo 40g de sal marinho (de preferência integral) em cada litro de água (se tiver acesso a água não tratada, melhor) e deixá-los nesse banho por cerca de doze horas,
durante as quais eles vão expelindo toda a areia lodosa que contêm e ficam finalmente prontos para serem cozinhados.
Cozinhar um lingueirão é exactamente, como com qualquer bivalve, não o cozinhar! Assim que qualquer bivalve se solta da casca por acção do calor, muito antes de ferver, está pronto para ser comido, deve ser retirado da fonte de calor e tudo o resto se vai desenrolar em paralelo mas sem o incluir, aproveitando o líquido que largou quando morreu, cozinhando-se temperos e acompanhamento envolvente mas o bivalve em si, só volta ao convívio do arroz, da massa, do pão, da sopa, só no fim e fora do lume. É esta regra que permite desfrutar de todo o seu poderoso sabor a mar, sem que se torne coreáceo, seco e desagradável. É também por isso que, por melhores que sejam, quaisquer bivalves congelados são sempre uma enorme decepção gastronómica e valem bem mais uns humildes berbigões frescos que vieiras congeladas.
Dito o essencial (que se aplica a qualquer preparação) vamos então ao risotto que acompanhou estes lingueirões.
Após a depuração dos lingueirões, abra-os numa frigideira, sem os sobrepor, apenas uma fiada de cada vez, para que possa controlar o que se vai passando.

Mal existam lingueirões abertos,
retire-os da frigideira e com o auxílio de uma colher de chá, remova-os da casca e reserve-os, bem como o líquido que libertaram.

Num fundo de azeite, refogue levemente o alho, a cebola e pimento vermelho, todos picados finamente e temperados de pimenta e louro.
Introduza o arroz e vá envolvendo até que os bagos se apresentem translúcidos.

Junte então meio copo de vinho e os estames de açafrão, deixe evaporar em lume forte e vá então juntando o caldo que obteve dos lingueirões, sempre aos poucos e mexendo continuamente para que o arroz solte todo o seu amido. Quando não tiver mais caldo continue com água, durante o tempo que o arroz levar a estar cozido ou a seu gosto,
o que pode acontecer em 11-12m se estiver a usar Carolino, 16-20m se estiver a usar um arroz italiano para risotto, ou, no meu caso, 18m pois estava a usar um arroz espanhol muito usado nas paellas, o “Redondo”.

Quando o arroz estiver cozido e o molho bem cremoso e abundante, rectifique o sal,  retire do lume, junte os coentros picados e os lingueirões, envolva e sirva.


Nota: * Segundo a portaria n.º170-A/2014, o stock de longueirão, lingueirão ou navalha na zona Sul foi considerado pelo IPMA  como sobre explorado, o que recomenda uma interdição da apanha desta espécie até que uma nova avaliação indique a recuperação dos bancos desta espécie. Assim, até ao final de Dezembro de 2015 é proibida a captura, manutenção a bordo e descarga de longueirão, lingueirão ou navalha (Ensis siliqua e Pharus legumen). Resta-nos assim algum lingueirão da apanha artesanal e o lingueirão que nos chega de Espanha, ode este pequenote tem fraca cotação e nos aparece nos mercados e um preço excelente.