quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Pickles de casca de limão ( hamed mreked)

     se é verdade que quando evocamos a maravilhosa cozinha marroquina o que nos salta de imediato à memória é a panóplia exótica dos açafrões, gengibres, cominhos ou o incontornável Ras-el-Hanout, não é menos verdade que quando metemos mãos à obra, quando tudo até corre bem e o prato maravilha os comensais, para nós que guardamos na memória os sabores experimentados lá, fica sempre algo em falta, indefinido, um je ne sais quoi que nos apressamos a atribuir a este ou àquele ingrediente ou tempero mas que não é mais do que a falta do limão em pickles salgados, o hamed mreked.
Quando na tagine da receita anterior vos disse que na falta do hamed mreked, usar casca de limão fresca era melhor que nada, foi exactamente isso que quis dizer: melhor que nada! Atrever-me-ia a afirmar que este singelo limão salgado representa a alma mais profunda e essencial da exuberante cozinha marroquina e é o único ingrediente verdadeiramente insubstituível.
Fazer esta conserva é de uma simplicidade desconcertante e deixei aqui o processo nativo em 2011, mas devo admitir que as quantidades envolvidas, as dificuldades de conservação depois de abertos os frascos e a utilização necessariamente esporádica na nossa cozinha quotidiana a tornam pouco prática. Nos últimos anos fiz várias tentativas para recriar o sabor do hamed mreked numa forma mais adequada ao uso que lhe damos na cozinha europeia e é dos resultados e do êxito dessas experiências que vos deixo hoje aqui circunstanciado relatório, última entrada deste ano de 2016, com votos para todos os leitores, amigos, seguidores ou apenas visitantes, de um bom Ano 2017!

Ingredientes:

Casca de 2 ou 3 limões
Sumo de 1 limão
Água
Sal marinho, grosso


Preparação:

Escolha limões maduros e cascudos e frascos pequenos, desses que se usam para compotas. Esterilize-os.
Retire o sumo aos limões e reserve o sumo de um limão para cada frasco. Corte a casca de cada metade de limão em oito partes
e retire parte da gulema branca onde estão ainda pegados os restos espremidos dos gomos.
Arrume estes pedaços dentro do frasco, de modo que fiquem apertados mas deixando uma margem abaixo do bordo,
junte o sumo reservado de um limão e ponha por cima uma colherada generosa de sal grosso.
Faça uma solução saturada de sal, dissolvendo-o em água, ao lume, de modo a que haja uma parte que já não se consegue dissolver e fica no fundo
e junte-a, ainda a ferver de modo a cobrir todo o conteúdo do frasco e fique com cerca de um centímetro abaixo do bordo do frasco.
Coloque o frasco aberto no microondas
e ligue até ver que o líquido está a ferver  e borbulhar. Abra a porta e tape de imediato, enquanto o líquido ainda ferve.

Deixe num local escuro durante um mês e está pronto o seu hamed mreked.
 Após abertura do frasco, mantenha no frigorífico e tente consumir em dois meses.


quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Tagine de frango, cebola e mais

              
                 Tinha estado a moer um novo frasco de Ras-el-Hanout, sem outra intenção que não fosse ter à mão essa preciosidade magrebina mas o aroma que então ficou na cozinha despertou em mim essa saudade dos sabores de Marrocos, que só passa quando o palato fica satisfeito. Tempo para desarrumar a minha velha tagine*,
vinda lá bem do sul de Marrocos já Sahara adentro, depois ainda de Ouarzazate.
Com o que havia em casa e o precioso Ras-el-Hanout acabado de moer, fez-se este prato a evocar as lonjuras e os incríveis sabores destes nossos vizinhos do Sul e a pôr em mim o “bichinho” de começar a pensar em voltar mais uma vez.

Ingredientes:

Azeite
Cebolas pequenas
Ras-el-Hanout
Alhos
Frango cru desossado
Cenouras
Nabos
Abóbora
Chuchu verde
Pimento vermelho
Tomate fresco
Batata doce
Azeitonas
Casca de limão de conserva**
Tâmaras***
Sal e pimenta

Preparação:

Verta uma quantidade generosa de azeite de modo a cobrir o fundo da tagine* e forre-o completamente com metades de cebolas pequenas e alguns dentes de alho. Polovilhe com Ras-el-Hanout.
Disponha por cima o frango desossado, em pedaços grandes e polvilhe de novo.
Vá depois dispondo em camadas os diversos legumes, sempre juntando mais Ras-el-Hanout, começando pelos que têm cozedura mais prolongada,Ras-el-Hanout e abundantes azeitonas.
as cenouras e nabo e terminando pelos de cozedura mais rápida, como a abóbora ou as rodelas de batata doce.
Termine enfeitando com algumas tâmaras*** descaroçadas, azeitonas e tiras de casca de limão de conserva.

Tape a tagine* e leve ao lume, sempre tapada, por cerca de uma hora, mantendo o calor no mínimo após começar a fervura. Não destape.
Pode também fazer a Tagine* no forno, a cerca de 160ºC, sendo que neste caso deve contar com o mínimo de duas horas e meia.


Notas: * Tagine é a transcrição para português da palavra árabe الطاجين que, sendo uma língua essencialmente fonética, pode ser transcrita de variadas maneiras. Eu uso a maneira mais usual em português, “tagine”, mas também pode escrever “tajine”, como transcrevem os espanhóis ou até “ dha-tagina” que é a maneira como eles dizem (ou como eu ouço!). Como “tagine” (à semelhança da nossa algarvia cataplana), tanto designa os pratos como o recipiente cónico em que tradicionalmente são confeccionados, optei por escrever com maiúscula quando estou a designar a comida e com minúscula para referir a caçarola.
** O limão de conserva em salmoura é muito importante em toda a cozinha marroquina. A sua preparação é fácil mas morosa e sendo impossível de encontrar por cá, pelo que, se não tiver limões em salmoura disponíveis, não hesite em usar umas tirinhas de casca de limão fresco. Não é a mesma coisa mas muito melhor que nada.

*** Naturalmente que se podem usar nas Tagines qualquer espécie de tâmara, mas se dispuser das magníficas tâmaras Medjool, uma tâmara grande e carnuda, mas mais curta que as tâmaras vulgares e que não tem qualquer açúcar ou melaço adicionado, não hesite. A diferença sente-se depois!

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Sandes de Molho (de iscas)

                 A  BSE, uma doença terrível que ficou conhecida por “doença das vacas loucas”, foi controlada através de uma enorme mortandade sanitária, graças à qual podemos hoje consumir de novo carne bovina com absoluta segurança.
Se em relação ao músculo, essa fase recente ficou apenas como uma má recordação, já em relação aos produtos viscerais, não só de bovinos como de outras espécies, ficaram várias interdições legais de comercialização que ainda hoje se mantêm e que provocaram uma verdadeira razia gastronómica em certos pratos que utilizavam miolos, tutanos, sangue, etc., cuja tradição foi assim interrompida, o que geralmente leva à sua inevitável extinção na prática culinária dos povos.
Um dos casos mais flagrantes é a proibição de comercialização do baço suíno, proibição tanto mais estúpida quanto não existe qualquer correlação entre o seu consumo e o risco de se contrair qualquer doença conhecida.
O baço é um órgão imunitário e de “limpeza”, muito sanguíneo e a alma culinária da deliciosa espessura do molho das iscas de porco, essa maravilha que povoa o nosso imaginário, até dos que não gostam de fígado, mas o molho das iscas, esse, só por si era razão para uma sandes!
Excepto para quem tenha acesso aos produtos de matanças privadas, é virtualmente impossível na cidade aceder a um baço de porco, com as nefastas consequências para quem, como eu, ainda mais que por iscas, anseia por um molho espesso e sem grânulos a embeber o pão: a sandes de molho!
A necessidade gera o engenho e sendo o molho a parte essencial de umas iscas, vamos então ver o que fazer para ultrapassar dificuldades e voltar a ter um molho fabuloso a encharcar o nosso pão.

Ao molho, então:

Ingredientes:

Fígado de porco
Vinha de alhos
Banha de porco
Sangue

Preparação:

Não vamos perder tempo com as iscas em si, que ficam para outro post. Corte-as muito finas e ponha-as, por um ou dois dias, numa vinha de alhos com os ingredientes habituais e um golpe de vinagre.
A espessura do molho final é determinada pela proteína existente na vinha de alhos, para a qual é determinante a quantidade de sangue. Como o fígado em si não liberta sangue suficiente (a menos que para uma quantidade muito pequena de molho), é necessário aumentá-la, que era o que dantes se fazia “raspando” o baço para assim libertar sangue para a vinha de alhos. Existem duas alternativas:
1º processo – Liquefaça totalmente uma isca com um pouco de vinagre, no processador ou com varinha, até estar reduzida a um creme liso e sangrento que vai então misturar na vinha de alhos, que logo toma um aspecto mais denso e espesso. Este processo implica um grande cuidado na fritura, pois fígado, mesmo desfeito, não é sangue e tende a aglomerar se não se mantiver a agitação constante.
2º processo – Junte sangue à vinha de alhos. O ideal seria sangue de porco, que não sendo proibido é ainda assim difícil de encontrar (mas consegue-se por encomenda nalguns talhos); o prático e de resultados idênticos no paladar é usar sangue de ave, desse que vem em saquetas com os frangos do campo e que em qualquer talho se pode arranjar, grátis, já que muitas pessoas não o levam quando compram a ave. Uso meio pacote de sangue para cerca de 750g de iscas.

Aqueça banha de porco e frite nela em lume muito forte, as iscas escorridas da vinha de alhos.
Quando todas as iscas estiverem fritas, junte a vinha de alhos e vá agitando a frigideira. Depressa o molho passará de líquido
a um creme espesso* e escuro
como cabidela, com o inconfundível aroma que enche a casa (e a rua!) e pede por um bocadinho de pão que o prove.
Uma sandes de molho faz-se molhando as duas partes do pão,
generosamente, no molho de iscas. Depois, é carregá-la com a carne
… ou não,
e comê-la, num processo escorrido, lambuzado e pouco bonito de se ver, mas uma sandes de molho é para comer, não é para ver!

Nota:
*Se o molho talhar, isto é, se houver separação entre o “castanho” e a gordura
ou formação de grumos, quer dizer que ferveu demais sem agitação constante, o lume foi demasiado forte ou havia demasiada banha para aquela quantidade de vinha de alhos. Não desespere! Retire a frigideira do lume, dissolva uma colher de café de amido de milho (Maizena) na quantidade de água de uma chávena de “bica”, junte ao molho talhado e leve de novo ao lume, agitando sempre, o que reconstituirá o molho.

domingo, 6 de novembro de 2016

Marmelada Branca

                      O Mosteiro de Odivelas, nos arredores de Lisboa, foi fundado por D.Dinis e nele se albergavam as freiras Bernardas, geralmente filhas da nobreza que não casavam por falta de dote e que aqui eram acolhidas, houvesse ou não vocação.
No reinado
de D. João V, o Mosteiro de Odivelas era famoso, não pela sua piedade, mas por se ter tornado num verdadeiro bordel onde o rei e a nobreza iam escolher amantes. Famosa ficou a concubina real, Madre Paula, de quem o rei teve pelo menos um bastardo, D. José, a quem ofereceu um palácio que é hoje a embaixada de Espanha.
Neste riquíssimo mosteiro e a par de uma doçaria conventual riquíssima, fazia-se uma marmelada de cor clara que seria da predilecção do guloso D. João V e cuja receita original nunca foi passada ao papel e ter-se-á perdido durante o declínio do convento, cuja última freira morreu em 1909, altura em que começou uma história muito mal contada sobre uns tais apontamentos que esta freira teria deixado a uma familiar onde constaria a receita da célebre “marmelada branca”.
Este manuscrito de autenticidade algo duvidosa, serviu para a publicação* da receita, que assim se popularizou e hoje é até objecto de um nome registado, e uma  infinidade de indústrias doceiras locais, mas que, na verdade, é uma receita muito pobre duma marmelada que é de tom claro porque quando pronta tem mais de 70% de açúcar, muito pouco recomendável para acrescentar ao já demasiado açúcar que consumimos, por querer ou sem querer, na alimentação moderna.

A marmelada branca não difere no sabor ou textura da marmelada avermelhada vulgar, mas é uma coroa de glória para qualquer cozinheiro. Faço-a com uma receita minha, muito simples, acessível a qualquer e com uma quantidade de açúcar menos pecaminosa, criada não a partir de qualquer “manuscrito perdido” mas simplesmente evitando os pontos da receita em que a marmelada escurece: a oxidação inicial do fruto e a inversão química do açúcar que sempre acontece em presença de ácidos durante a fervura final.


Ingredientes:

1 kg de polpa cozinhada de marmelo (ou gamboa***)
750g de açúcar branco
Sumo de um limão (ou 1 c.café de ácido cítrico)**

Preparação:

Ferva água abundante durante cerca de quinze minutos e deixe-a arrefecer até ficar morna. Esta fervura serve para retirar grande parte do oxigénio dissolvido na água, que vai assim servir para isolar o fruto descascado.
Descasque os marmelos, retire-lhes as sementes e parta-os em pedaços não muito grandes para dentro da água fervida e morna.
Se achar que mesmo assim os seus marmelos escurecem durante o descascar, faça-o dentro de uma bacia com água fria acidulada com vinagre.
Escorra os pedaços e acomode-os num ou mais recipientes resistentes ao calor,
tape-os com película aderente apropriada e leve-os ao microondas ou ao forno a 180ºC, assim tapados, para cozinharem.
Quando bem cozidos, triture-os com a varinha ou passe-vite,
pese o polme obtido e leve-o ao lume, mexendo sempre até ferver. Junte então o açúcar usando a proporção de 4:3 (3 partes de açúcar para cada 4 de polme),
leve ao lume até que ferva de novo e junte o sumo de limão (ou o ácido cítrico)**, mesmo no fim.
Passe logo para tigelas, onde irá solidificar.


Notas:
*Livro de Receitas da Última Freira de Odivelas, Verbo editora, 1999.
** Esta acidificação é necessária para que a pectina possa dar forma à marmelada; se quiser uma marmelada de barrar, use apenas o marmelo e o açúcar.

*** As gamboas são os grandes marmelos que aparecem geralmente à venda nas cidades. Em relação aos pequenos marmelos “originais”, apresentam uma quantidade de pectina muito reduzida, pelo que se utilizar gamboas para marmelada, terá que adicionar pectina em pó, ou a marmelada de gamboa nunca ficará firme de cortar à fatia, sendo embora deliciosa como marmelada de barrar.

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Bolo de Dióspiro com Nozes


       
         Nos oito anos que o Outras Comidas já leva, publiquei aqui vinte e uma receitas de bolos e afins. Se tivermos em conta que todas as receitas são já perto de oitocentas, fica bem visível a importância que dedico a estes preparados na minha cozinha, onde são realmente raros. E até sou bem guloso, mas a habilidade e o saber foram-se sempre desviando para outros condutos onde podia ser mais criativo e a verdade é que não sinto em relação a bolos o mesmo à-vontade e até prazer com que vivo o resto da experiência da cozinha.
Mas hoje fica aqui este bolo, que não é nenhuma novidade, sendo até aquilo a que se chama bolo-da-moda, com a receita a circular por revistas, jornais, programas de televisão daqueles conhecidos por "mata-neurónios", de mão em mão, etc. 
Chamou-me a atenção pela composição, algo estranha e fora do processo tradicional da maioria dos bolos, mas a razão porque aqui fica é, no entanto, a mais poderosa das razões: apesar de ser “da moda”, este Bolo de Dióspiro e Nozes é bom, muito bom mesmo!

Ingredientes:

450g de polpa de dióspiro
1 c. chá de bicarbonato de sódio
100g de manteiga
250g de açúcar amarelo
1 ovo
300g de farinha
2 c. chá de fermento químico
1 c. chá de canela moída
½ c. chá de noz moscada
100g de miolo de noz
Raspa de uma laranja
Açúcar em pó (para cobrir)

Preparação:

Liquefaça a polpa do dióspiro (da variedade mole)
com o bicarbonato e reserve. Bata bem a manteiga com o açúcar,
junte-lhes a polpa de dióspiro (que entretanto se transformou numa espécie de gelatina firme)
e o ovo.
Misture a farinha, fermento, canela e noz-moscada, peneire e junte ao preparado, mexendo sempre até obter uma massa uniforme. Junte por fim a raspa de laranja e as nozes partidas à faca, misture e leve ao forno a 180ºC, numa forma de bolo inglês untada e enfarinhada ou simplesmente forrada com papel vegetal,
durante cerca de 40-50 minutos ou até estar cozido.
Como todos os bolos baseados em polpas de frutos, melhora muito com o passar do tempo, ficando, em vez de endurecer, cada vez mais húmido e “pecaminoso”.


Nota:
Este bolo é francamente melhor no dia seguinte. Só ganhará em fazê-lo de véspera ou mesmo dois ou três dias antes de consumir.
Para quem não goste de dióspiro, nada receie, pois a sua presença é indetectável no bolo pronto.


quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Carne maturada (a seco), carne perfeita!

            Chegou a medo, primeiro a enfrentar todos os preconceitos e até limitações legais, que a ignorância é, como se sabe, a mãe de todas as arrogâncias e prepotências. Era a carne maturada e foi, lentamente, desbravando estatuto à custa de meia dúzia de entusiastas e das suas portentosas qualidades de sabor e textura. O que era ainda há poucos anos uma iguaria quase secreta que se ia comer a sítios especiais e com um sentimento de quase-transgressão, é hoje comum a nível da restauração média e, finalmente, até nas nossas cozinhas, embora muito pouco saibamos ainda sobre esta maravilha gastronómica de que já Olleboma, na sua Culinária Portuguesa, escrita nos anos 30 do sec.XX, ao falar da carne para o famoso Bife à Marrare, preconizava “ 1 fatia de carne de 150 gramas de pojadouro ou alcatra que tenha estado em frigorífico à temperatura de um a quatro graus positivos durante cinco a seis dias…”. Ao que parece, já há um século se sabia que a maturação da carne é o único caminho para a obtenção de um bife perfeito.

Quando qualquer animal morre, iniciam-se dois processos distintos que levam à destruição do corpo: um processo enzimático que se desenvolve no interior da cada célula e que vai “digerindo” as grandes moléculas responsáveis pela dureza das fibras musculares, e um outro exterior, bacteriano. É este último o responsável pela putrefacção, o apodrecimento,  que torna a carne imprópria para consumo e mesmo tóxica.
Maturar carne é proporcionar-lhe um ambiente apropriado para que se desenvolva o tal processo interno, enzimático, mas impedindo o ataque bacteriano exterior que a faria apodrecer em vez de maturar. Para isso, existem dois processos, a que chamaremos sucintamente, processo “húmido” e processo “seco”.
O processo húmido é o mais fácil e vulgar, sendo usado nas carnes maturadas que se vendem nas grandes superfícies: consiste em fechar as peças em vácuo e deixá-las assim embrulhadas sem contacto com o ar num ambiente refrigerado durante um certo número de dias, geralmente entre sete e vinte e dois, após o que pode ser consumida. Muita da carne que é importada refrigerada e embalada em vácuo, como as “picanhas” sul-americanas, é na verdade maturada, nem que seja pelo tempo de transporte refrigerado, embora isso não seja em geral mencionado, para não levantar desconfianças e afastar clientes, que aqui em Portugal incensa-se geralmente à frescura.
A carne maturada por este processo é boa, mas o processo-rei, aquele que verdadeiramente interessa ao grande apreciador de carne é, sem dúvida, o processo de maturação “seco”, que produz algo que é um verdadeiro desafio de excelência ao paladar mais exigente.

Neste processo seco, os animais, que devem ser gordos e adultos, são dependurados inteiros após o abate, refrigerados, e sofrem assim um primeiro “amaciamento” durante duas a três semanas, sendo depois desmanchados em grandes peças que iniciam então a maturação durante mais trinta ou sessenta dias, embrulhadas em pano e numa câmara fria e arejada, durante os quais a parte exterior vai secar e passar por uma dramática alteração de aspecto,
enegrecendo e ganhando até bolores.
É do interior desta “múmia”, que se porta na verdade como o isolante perfeito contra os ataques bacterianos, que sai a carne maturada.
As perdas podem atingir mais de 30% depois da peça descascada da parte seca, das gorduras externas e de ossos, mas a peça limpa e densa que sai dali vale bem o preço relativamente alto que custa, é pura delícia com o sabor a carne concentrado pela secagem relativa e pela gordura de animal criado em pastagem. A tenrura é indescritível, o uso de faca é realmente supérfluo e, aqui, não se trata apenas de uma metáfora. É comer uma carne bem mais tenra que vitela de leite mas que não é vitela, nem vitelão, nem sequer novilho. É vaca!
O amante dos prazeres da carne não tem mais que se debater perante a eterna opção entre vitela tenra mas insípida e vaca, dura mas saborosa. A carne maturada reúne o melhor de dois mundos.
Pense bem antes de iniciar esta aventura gustativa sem retorno. Depois de se provar carne maturada, dificilmente se volta atrás!

A VACA* é o nome que Pedro Vivo deu ao seu talho** dedicado à carne maturada a “seco”, onde já não é preciso ser chefe ou dono de restaurante para poder ir lá comprar um bife para o almoço,
com a particularidade de este ter estado a ser preparado pelo tempo, desde o pasto alentejano, durante os últimos dois ou três meses!
É um talho sui generis para uma carne sui generis. Ali não há o balcão tradicional, apenas uma grande vaca decorativa no meio do espaço
e depois, à volta, uma sala de trabalho e as câmaras onde se vêem as feias grandes peças de onde emergirão as maravilhas gustativas que encerram.
Digo o que pretendo, que pode ir de vazia, alcatra ou rosbife, todos fabulosos, a um simples ossobuco, para outro tipo de delícia,
e deixo-me guiar pela experiência de Pedro Vivo. Nunca me dei mal!

Notas: * Poderão estranhar os meus leitores mais assíduos a menção a uma marca comercial neste blog, em geral avesso a patrocínios e publicidade. Na verdade, trata-se apenas de serviço público, já que “A Vaca” é o único local onde um particular pode adquirir carne maturada pelo processo “seco” descrito. Existem outros para o processo “húmido”, mas não é do que hoje aqui tratamos.
** “A Vaca” – Rua Abade Faria, 56-A (ao Areeiro)
      Akihacarne - R. Arq. Cassiano Barbosa, 136, Pinheiro Manso - Porto